Follow Us
j

Pesquisa

Dois diplomas e um sistema de saúde

Artigo de Opinião | Dois diplomas e um sistema de saúde

No último mês, foram publicados dois diplomas que alteram alguns aspetos dos regimes aplicáveis aos trabalhadores médicos.

O mais recente, o Decreto-Lei n.º 65/2025, de 10 de abril, alterou o regime de dedicação plena, procedendo a uma modificação que o próprio preâmbulo classifica de “pontual”.

O referido decreto-lei clarifica que, quando o regime de dedicação plena (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 103/2023, de 7 de novembro) permite a adesão individual dos médicos das áreas dos cuidados de saúde primários e hospitalar nas situações em que não seja possível integrarem respetivamente uma Unidade de Saúde Familiar (USF) ou um Centro de Responsabilidade Integrada (CRI), esta adesão individual deve incluir, (i) na área hospitalar, os trabalhadores da carreira especial médica que exerçam funções no Sistema de Saúde Militar e nos estabelecimentos prisionais da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, e, (ii) na área dos cuidados de saúde primários, os trabalhadores médicos da especialidade de medicina geral e familiar que prestem atividade assistencial em unidades orgânicas integradas no SNS que não correspondam a USF ou Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados.

O Decreto-Lei n.º 65/2025, de 10 de abril, prevê ainda que os trabalhadores médicos da área de emergência pré-hospitalar também podem aderir individualmente ao regime de dedicação plena.

Em nossa opinião, apenas a última previsão, relativa à área de emergência pré-hospitalar, é realmente uma novidade, uma vez que o anterior âmbito subjetivo de aplicação já permitia, por via interpretativa, chegar ao mesmo resultado que agora fica expresso na letra da lei.

Recuando uns dias, assistimos também à publicação do Decreto-Lei n.º 46/2025, de 27 de março, que alterou as diferentes estruturas remuneratórias aplicáveis aos trabalhadores médicos em regime de dedicação plena, aos médicos integrados na carreira especial médica e aos médicos internos.

O principal aspeto a salientar consiste no facto de a alteração das estruturas remuneratórias – para além de diluídas no tempo, uma vez que existem aumentos a operar os seus efeitos em 2025, 2026 e 2027 – ser conciliada com uma outra forma de aumento salarial, que o diploma apelida de reposicionamento remuneratório, mas que corresponde a uma subida automática de uma ou duas posições remuneratórias.

As normas de reposicionamento remuneratório são habitualmente usadas para estabelecer quais as posições remuneratórias que os trabalhadores já integrados numa carreira vão ocupar quando a revisão da carreira altera, de forma relevante, a respetiva estrutura remuneratória. Estas normas funcionam, assim, como um explicador para a transição entre posições remuneratórias da estrutura da antiga da carreira e da nova, e estão ainda hoje enquadradas pela regra constante da chamada Lei dos Vínculos, Carreiras e Remunerações (cf. artigo 104.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro).

Ora, tal não é o caso do diploma em apreço porque (i) não existe uma alteração relevante na estrutura remuneratória da carreira e porque (ii) uma parte do conteúdo da norma, apelidada de reposicionamento remuneratório, prevê a subida de uma ou duas posições remuneratórias para os trabalhadores que já ocupam certas categorias e posições dentro da carreira.

Ou seja, o processo de progressão dentro da categoria, que na maioria das outras carreiras da Administração Pública (inclusivamente na própria carreira especial médica) é sustentada exclusivamente no resultado da avaliação de desempenho, é completamente ultrapassado através de um automatismo que permite a subida de posição remuneratória sem qualquer outro fundamento que não seja o aumento das remunerações dos profissionais envolvidos. Ao estabelecer parte dos aumentos salariais por via deste automatismo, evita-se que o ónus desses aumentos esteja apenas projetado na mudança dos níveis remuneratórios correspondentes às posições remuneratórias da carreira.

O problema da utilização deste expediente para o aumento das remunerações dos trabalhadores que atualmente integram a carreira (e não a promoção do aumento das remunerações da própria carreira para todos os futuros trabalhadores) é que o mesmo pode gerar ultrapassagens entre médicos que, estando na mesma categoria e posição remuneratória, vão acabar por receber remunerações base diferentes.

Vejamos um exemplo retirável do regime de dedicação plena e do regime das 40 horas semanais, que a partir de 2026 passam a ter a mesma estrutura remuneratória.

A 1 de janeiro de 2025, os trabalhadores médicos nas categorias de assistente, assistente graduado e assistente graduado sénior, sujeitos ao regime da dedicação plena, bem como sujeitos ao regime de 40 horas semanais, são colocados na posição remuneratória imediatamente seguinte àquela que detêm na sua categoria, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 46/2025, de 27 de março.

Tomemos o caso concreto de dois médicos que ocupam a 5.ª posição remuneratória da categoria de assistente graduado, só que um deles encontra-se no regime de dedicação plena e outro no regime das 40 horas semanais. Em ambos os regimes, a 5.ª posição remuneratória da categoria de assistente graduado corresponde ao nível 68 da tabela remuneratória única.

Por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º que já citámos, o médico do regime da dedicação plena passa para a 6.ª posição da categoria, a que corresponde o nível 70, mas o médico com o regime das 40 horas não tem 6.ª posição para a qual subir no respetivo regime, ficando na mesma posição que já ocupava (a 5.ª). Quando a 1 de janeiro de 2026, as tabelas salariais do regime de dedicação exclusiva e do regime das 40 horas passam a ser a mesma, o médico em dedicação plena passa para o nível 71 enquanto o médico das 40 horas passa para o nível 69. E a partir de 1 de janeiro de 2027 ambas as posições sobem mais dois níveis, mas mantém-se a diferença remuneratória entre dois médicos que ocupavam a 31 de dezembro de 2024 a mesma posição na mesma categoria.

Por efeito da aplicação do automatismo previsto na lei, o médico das 40 horas não voltará a ganhar o mesmo, a título de remuneração base, do médico em dedicação plena, mesmo que em momento posterior escolha aderir ao regime da dedicação plena. Portanto, por efeito de uma medida que supostamente deve trazer o benefício do aumento salarial para os trabalhadores abrangidos, criou-se uma injustiça entre médicos de forma totalmente desnecessária.

É, assim, forçoso concluir que a utilização deste expediente para promover aumentos salariais é gerador de mais injustiça relativa do que benefício.

Apesar de tudo, e sabendo que todos os aumentos salariais são bem-vindos no sentido de melhorar a remuneração dos profissionais de saúde, consideramos que a grande aposta e a única capaz de robustecer o Serviço Nacional de Saúde corresponde à operacionalização de CRI de serviço ou patologia. Só com a implementação deste tipo de organização dentro dos hospitais será possível criar equipas motivadas, bem remuneradas e capazes de dar resposta às solicitações dos utentes de forma eficiente. Todavia, não tendo havido interesse na concretização desta aposta, tal implementação esbarra em obstáculos como a inexistência de sistemas de informação que permitam verificar as métricas a que os CRI estão obrigados.

Autoria de Inês Ramires, Coordenadora da Área de Prática de Emprego e Administração Pública.

Leave a Comment