
Artigo | Baixa médica ou licença para férias? Onde traçamos a linha do dever de lealdade?
Recentemente, foi notícia o caso de uma trabalhadora grávida, com diagnóstico de gravidez de risco, que, após apresentar baixa médica por incapacidade para o trabalho, viajou para o Brasil. A viagem, alegadamente feita por “necessidade”, foi de 9 dias e acompanhada de várias fotos e posts nas redes sociais, algo que poderá levantar sérias dúvidas sobre a verdadeira natureza dessa viagem. A entidade empregadora, nomeadamente percebendo a contradição entre o motivo da baixa e a viagem, considerou que este comportamento violava o dever de lealdade e a confiança essencial à relação laboral e decidiu avançar para o despedimento.
Como a trabalhadora se encontrava grávida, a empresa teve de submeter o pedido de parecer prévio à CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego) – exigência legal nestes casos. Como acontece quase invariavelmente, a CITE emitiu parecer negativo, não “autorizando” o despedimento. Face a esta posição, a única via possível para a entidade empregadora seria recorrer aos tribunais para ver a sua decisão validada com base em justa causa.
O tribunal rejeitou a pretensão da entidade empregadora, por considerar que a gravidez de risco foi clinicamente fundamentada e o atestado não era fraudulento; a conduta da trabalhadora, ainda que discutível, não atingia o grau de gravidade necessário para justificar um despedimento com justa causa. Contudo, a realidade é que o comportamento da trabalhadora não pode deixar de gerar controvérsia.
Esta decisão, juridicamente fundamentada, levanta inevitavelmente uma questão fulcral para as empresas: como justificar que uma grávida com diagnóstico de risco tenha “necessidade” de viajar de Portugal para o Brasil, durante 9 dias, partilhando momentos em redes sociais, quando alegadamente deveria estar inapta para trabalhar? Este comportamento, não poderá colocar em causa a lealdade entre as partes?
A resposta pode ser complexa, mas há um ponto claro: a lealdade continua a ser um pilar essencial da relação de trabalho. Se a baixa médica é verdadeira, a justa causa torna-se mais difícil de demonstrar. Mas isso não elimina o impacto ético e relacional de comportamentos que, mesmo dentro da legalidade, fragilizam o vínculo de confiança entre empresa e colaborador.
O direito à proteção da gravidez é inquestionável, mas também é essencial manter o compromisso de lealdade e responsabilidade. Quando o comportamento do trabalhador coloca em dúvida essa lealdade, a relação de confiança fica irremediavelmente abalada. E é aí que muitas empresas se veem reféns de um sistema que, embora garanta direitos, parece deixar a parte ética e relacional em segundo plano.
Assim se vê o desequilíbrio entre a proteção, ainda que legítima, de determinados direitos laborais e a limitação crescente da capacidade das empresas de reagirem a comportamentos que, sem serem formalmente ilegais, abalam a estrutura relacional dentro das organizações.
O que está em causa não é só a legalidade de uma baixa médica, mas o equilíbrio entre os direitos e os deveres no âmbito laboral; em nome da proteção dos direitos, o sistema não parece dar conta do impacto da quebra de confiança que casos como este podem causar.
Autoria de Ana Rita Nascimento, coordenadora do Departamento de Laboral e Segurança Social.